ATUALIZADO em 17/10/2022: correção, quem fazia a diagramação da revista inicialmente era a Mare Magnum, não a Pimenta Comunicação. Obrigado ao Rodrigo Stulzer pela informação!
Recentemente, enquanto ajudava meus pais a organizar uma mudança, encontrei um artefato curioso em meio a uma pilha de revistas: um envelope pardo, com o texto “Revista do Linux nº 1” escrito na frente. Achei que era uma das minhas número 1 lacradas, que guardo por valor sentimental.
Quando abri o envelope, tive uma surpresa: ele continha, sim, um exemplar da nº 1. Mas não uma cópia “de banca”. Em vez disso, trata-se de uma prova impressa, praticamente completa, da edição. Uma das muitas que eram feitas durante o processo de produção.
Prontamente digitalizei esse material, parte inegável da história da informática no Brasil. O resultado são 64 páginas escaneadas em tons de cinza a 300 DPI, num total de 320 MB. O arquivo PDF está disponível no Google Drive.
Eu não participei da RdL 01: quando entrei na Conectiva, em dezembro de 1999, ela já estava pronta (e recebi um exemplar, como todos os funcionários). Meu primeiro artigo só foi publicado na 02, que saiu em maio de 2000.
Entretanto, fui membro em tempo integral da equipe de redação da nº 5 (se não me engano) até a edição 45, o que me permite extrair alguns “insights” sobre o processo de produção da primeira edição, que compartilho aqui com vocês.
Mas antes, preciso explicar como era feita a diagramação da RdL, já que o material é fruto direto desse processo, digamos, pouco otimizado, devido às circunstâncias da época.
O processo de diagramação
A equipe de redação da RdL ficava dentro do departamento de documentação da Conectiva (a Doc), na sede da empresa em Curitiba. Mas durante quase um ano e meio a diagramação foi feita em São Paulo, se não me engano por uma empresa em São Paulo chamada Mare Magnum.
O processo de produção era mais ou menos o seguinte: os textos e imagens das matérias eram enviados para um servidor FTP, de onde a Mare Magnum baixava o material. Não me lembro que software/plataforma eram usados na diagramação, mas pelo que sei sobre o cenário de DTP (Desktop Publishing) da época, muito provavelmente o software rodava em um Mac, a plataforma preferida pelos profissionais da área.
E não, definitivamente não era Linux. Nem mesmo a Linux Magazine Brasil, que editei anos depois, era diagramada em Linux. Na época da RdL, simplesmente não havia um software Open Source à altura da tarefa.
O pessoal da Mare Magnum fazia uma diagramação inicial da edição, colocando os textos em colunas e paginando os artigos. Mas muitas vezes os textos não tinham indicação de “o que era o quê”: algo como “esse trecho é um box, esse é uma legenda da imagem 2, esse é um subtítulo”, etc. Então o diagramador fazia o seu melhor para “adivinhar” a intenção do autor.
Isso resultava em um primeiro conjunto de PDFs, que eram enviados para o servidor FTP. A equipe de Curitiba baixava esse material, imprimia e, à mão, usando lápis e caneta, começava a corrigir as páginas. Controle de revisão em mídia física, que tal?
Dá para ver várias dessas correções (principalmente de ortografia e digitação) na entrevista com o Dirk Hohndel, nas páginas 4 a 6. Mas ela representa um estágio avançado do processo de edição: a primeira prova de um artigo era muito mais “rabiscada”, com trechos inteiros anotados para indicar o que precisava ser mudado.
Um bom exemplo disso é meu artigo na edição nº 2, sobre Linux no iMac. Vejam a diferença entre a primeira prova e a versão final, abaixo.
Correções feitas, o que a equipe da RdL fazia com todos aqueles PDFs “rabiscados”? Escaneava e colocava de volta no FTP, certo? Errado! Eles eram enviados de volta à SP por… FAX!
Para quem não conhece: máquinas de FAX eram conectadas à linha telefônica, e permitiam “escanear” um documento de um lado, que era impresso numa máquina correspondente do outro. A impressão era em bobinas contínuas de papel térmico, e a qualidade deixava bastante a desejar.
Por isso, após enviar as correções para SP, era comum fazer um telefonema para saber se todas as páginas chegaram corretamente e se havia alguma dúvida. Afinal, nem sempre as anotações ficavam legíveis.
Repita esse processo umas três vezes, ao longo de uma semana, e eventualmente você terá um conjunto de PDFs pronto para enviar à gráfica.
Eventualmente, a revista passou a ser diagramada por um profissional em Curitiba (o Nilson César), mas ainda assim a produção e diagramação eram feitas em locais separados. Perdi a conta de quantas vezes peguei um táxi até o apartamento do Nilson com uma pilha de páginas em um envelope para “bater” as correções.
Analisando a nº 1
A julgar pela pouca quantidade de anotações, a prova da RdL nº 1 que escaneei foi a última antes da edição ser enviada para a gráfica. O texto com mais correções é a entrevista com Dirk Hohndel, que veio de uma prova anterior: o volume encadernado que tenho inclui duas versões da entrevista, e digitalizei a mais antiga para ilustrar melhor o processo que descrevi acima.
É interessante ver que a “essência” da edição original foi mantida durante toda a vida da revista. Entrevistas com expoentes do Software Livre, tutoriais, artigos focando no uso do Linux no mundo corporativo (originalmente quase sempre em servidores, mas gradualmente cada vez mais como desktop), análises de software, o CD mensal, tudo isso já existia desde o começo.
Notem que a data no rodapé de cada página diz “nov/dez 1999”. Originalmente a RdL seria bimestral. Como a revista foi extremamente bem recebida, isso logo mudou. Se não me engano, já na 3ª edição a periodicidade passou a ser mensal. Curiosamente, a “Carta ao Leitor” daquela edição não menciona a mudança.
O conteúdo da revista sempre foi produzido por um misto de funcionários da Conectiva (que podiam sugerir ideias) e nomes da comunidade. Mas nesta primeira edição uma coisa que me chama a atenção é a participação dos fundadores da empresa: temos artigos de Sandro Nunes Henrique, Wanderlei Antonio Cavassin e Rodrigo Stulzer Lopes.
Outros fundadores (como Rodney Miyakawa e o Arnaldo Carvalho de Melo) escreveram para as edições seguintes, mas não me lembro de outra edição com tantos fundadores juntos. Outra coisa curiosa é a quantidade de artigos não assinados. Imagino que tenham sido produzidos pela equipe da Pimenta Comunicação, assessoria de imprensa da Conectiva na época.
Não há anúncios na prova da nº 1. Eles eram as últimas coisas a serem inseridas, entre outros motivos por que era comum os anunciantes entregarem o material na última hora. Isso quando ele vinha no formato certo: não era raro um anunciante inexperiente mandar um BMP em 640 x 480 pixels achando que estava em “alta qualidade” e bom o suficiente para a impressão.
O artigo na página 45 fala de uma nova ferramenta, o Gimp! Infelizmente, logo de cara cai no estereótipo de que ele é “o nosso Photoshop”. O problema é que a equivalência é falsa: sim, ambos permitem a criação e o tratamento de imagens de forma bastante sofisticada, mas o Photoshop, ainda mais na época, tinha muito mais recursos que a alternativa livre.
Isso gerava frustração entre profissionais que experimentavam o Gimp e esperavam encontrar um clone do software da Adobe, na expectativa de fugir do alto custo da licença na época. Lembro-me de uma diferença crucial: durante muitos anos o Gimp não tinha suporte ao espaço de cores CMYK, usado na indústria gráfica.
Também é digno de nota o artigo do Rodrigo Parra Novo sobre jogos no Linux. Lembrem-se que na época Linux era “coisa de servidor”, usá-lo no dia-a-dia como um sistema desktop era algo bastante incomum, e mais incomum ainda seria usá-lo como plataforma de jogos. Por isso o apoio de empresas como a Loki (que portou vários jogos de Windows para a plataforma) e a id Software chamava a atenção.
Rodrigo menciona que “Atualmente, jogos comerciais para Linux podem ser encontrados em diversos sites na Internet e, possivelmente, logo estarão nas lojas do ramo”. Esse “logo” demorou um pouco, mas com o advento de serviços como o Steam e de frameworks multiplataforma como o Unity, os jogos no Linux hoje são algo comum. O “pinguim” tem até seu próprio console, o SteamDeck, que tem se mostrado bastante popular.
Por fim, não posso deixar de mencionar a capa da primeira edição, feita pelo talentosíssimo Alex Lutkus, que continuou na equipe até a edição 19. O Rodrigo Stulzer tem um excelente artigo em seu blog com todas as capas feitas por Alex em alta resolução, e um bate-papo com o ilustrador discutindo os bastidores de criação de cada imagem. Leitura recomendada!
Quer mais RdL?
Quem quiser mergulhar um pouco mais na história da RdL pode consultar o acervo digital mantido por Augusto Campos, que preserva o texto das 44 primeiras edições. Esse texto era gerado a partir dos PDFs originais, convertido para HTML e colocado no CD e no site da Revista.
Infelizmente, formatação e imagens se perdiam no processo. O único acervo “fiel” de edições que eu conheço é o do Datassette, que tem 15 edições em PDF. Se você tem edições que estão faltando, sugiro que entre em contato com a equipe do site, e faça uma doação para contribuir com o esforço de preservação.